Desde logo um paradoxo: a importante produção de bordado que se verifica por toda a Portela da Lixa, e áreas confinantes, não é entendida localmente como algo que mereça algum destaque. Não se encontram postais, antigos ou modernos, com bordadeiras, não há monografias a cuidar do tema, muito menos se verifica a existência de qualquer sinal que celebre o bordado ou as suas cultoras: nome de uma praça, de uma avenida, uma estátua… Nesta aparente falta de visibilidade, no modo como tudo parece tão “natural”, encontram-se os sinais que denunciam a efectiva importância do bordado e o quão profundamente se insere nas estruturas sociais e económicas da área.
Efectivou-se, em novembro de 2005, um inquérito ao qual responderam 708 bordadeiras. Os seus resultados permitem objectivar o sistema produtivo do bordado de Terra de Sousa, caracterizando algumas das suas principais variáveis. Tendo-se feito um inquérito muito semelhante em 1995 estes resultados permitem ainda avaliar a evolução verificada nestes últimos dez anos.
Ao contrário do que muitos, exteriores à região, pensam, este bordado é feito em estruturas profissionais, empresas que, nalguns casos, podem ter a bordar para si quase 200 bordadeiras… A regra não será esta e, o número médio de bordadeiras por riscadeira ou contratadeira, nomes que por vezes designam as patroas andará pelas oito, existindo, como se imagina, todas as possíveis modulações: bordadeiras que trabalham sozinhas e vendem em feiras de artesanato ou são procuradas nas suas casas pelos clientes, bordadeiras que bordam para várias casas, bordadeiras que bordam apenas para uma única empresa.
De facto, o que o Inquérito de 2005 revela de mais espantoso é a constância da proporção de bordadeiras por conta própria e daquelas que bordam por conta d’outrem: 11,1% e 85,9%, respectivamente, havendo cerca de 3% de bordadeiras que não respondem à questão. Esta mesma razão revelou, em 1995, valores muito próximos, 10,2% e 82,9 % respectivamente. Igualmente significativa da constância do modelo de produção é a resposta que as inquiridas deram à pergunta sobre a dedicação em exclusividade ao bordado, pois cerca de 83% revelou que não tem nenhum outro emprego que não bordar (em 1995 a percentagem era um pouco mais elevada, de 89%). Com estes elementos não surpreende que 75% das inquiridas revelem que trabalham a tempo inteiro no bordado.
Caracteristicamente, a produção do Bordado da Terra de Sousa implica a existência de uma estrutura responsável pela compra dos materiais e definição do desenho. O desenho passa para o papel de um modo, estranhamente, pouco profissional, de um empirismo que, muitas vezes, é o responsável por alguma falta de qualidade. Aqui os desenhadores não são profissionais, no sentido de terem tido uma formação ou treino, específico e cuidado, na área do desenho, como acontece, por exemplo, na Madeira. Os desenhos, originais ou não, são passados a lápis para um papel vegetal. Este coloca-se sobre o tecido a riscar, com um papel químico por baixo e, ao riscar novamente o vegetal, por cima do desenho inicial, passa-se o desenho para o tecido. O papel vegetal com os desenhos, serve até que se rasga e degrada, não permitindo outras utilizações.
Como o papel químico existe em dimensões pouco apropriadas à totalidade dos padrões, muitas vezes o desenho é passado por partes para o tecido, originando pequenas distorções. Também a mão que decalca o desenho nem sempre tem a segurança necessária para riscar sem introduzir variações, ou seja, todo este processo, de um amadorismo confrangedor, é responsável por muita da má qualidade de algum bordado, pois que não há bordadeira que “salve” um mau desenho.
Foi a pensar neste conjunto de problemas que a Casa do Risco, ainda em 1997, investiu no desenvolvimento de um projecto que permitisse ultrapassar tais constrangimentos. Apesar de se conhecerem os excelentes resultados obtidos na Madeira, estava fora de questão copiar o processo que ali se utiliza: sobre folhas de papel vegetal para as quais se transpôs um desenho, pelo processo de uma micro-picotagem, passa-se uma “boneca” com um corante, o qual estampa no tecido aquele desenho previamente picotado. Reconhecendo-se a grande qualidade que traz para o Bordado da Madeira, trata-se de facto de uma tecnologia do século XIX, com os correspondentes custos de mão de obra, incomportáveis nos nossos dias, sobretudo quando já se está a produzir um produto que é, por natureza, muito caro. O bordado manual, será cada vez mais um produto de luxo, pelo que há que saber economizar em todas as operações que a sua produção implica excepto, evidentemente, o próprio bordado.
Se definir o problema não era difícil, mais complicado foi para a PRAT – Integração de Sistemas, Lda (sedeada no Porto, no centro de incubação de empresas NET- Novas Empresas e Tecnologias), encontrar uma solução que permitisse transferir desenhos para o tecido, com precisão, de modo a obter vários desenhos iguais. Tendo começado por pesquisar no mercado sistemas de risco para medidas até 2 metros, após análise cuidada foi escolhida, entre várias, a plotter da Lectra Systeme. Analisado e compreendido o protocolo de comunicação com essa plotter, houve que escolher os formatos gráficos em que seriam trabalhados os desenhos dos bordados, recaindo a escolha no formato DXF, como formato intermédio entre os gerados pelas aplicações de desenho e o formato aceite pela plotter. Tal vem a implicar que os desenhos sejam feitos ou tratados em aplicações tipo Corel Draw, Autocad, ou outras, que possam gerar ficheiros DXF ou algo convertível em DXF. Chegados a este ponto, António Teixeira, da PRAT, desenvolveu em parceria com o Victor Augusto, da empresa NORCAM, um programa que lê o formato DXF e o converte no formato que a plotter “entende”.
Em linguagem mais acessível pode dizer-se que se encontrou uma máquina, a referida plotter, que risca directamente o tecido, que pode ter até 2 metros de largura, mediante a sua ligação a um computador que possui as instruções de cada desenho.
Uma das grandes vantagens de todo este processo é que os desenhos não só se podem fazer com apoio informático, como se podem digitalizar, ou seja, desenhos que só existem em suporte de papel, podem ser lidos e armazenados no computador.
Tal significa a existência, extremamente acessível, de um arquivo de desenhos, e a facilidade de se manipularem e criarem novos motivos, bem como a possibilidade de recuperarem desenhos antigos digitalizando os próprios bordados, com essa acrescida vantagem de todos estes resultados poderem passar, rapidamente e com qualidade, directamente para as peças a bordar.
A Casa do Risco foi pensada como uma estrutura que, entre outros serviços a prestar aos produtores de bordado, disponibilizaria este apoio na transposição do desenho para o tecido, o que tanto pode fazer a partir do desenho que um potencial cliente lhe apresente, como a seu pedido, desenvolver um novo desenho. A distância que vai das intenções às acções é, no entanto, maior do que por vezes se imagina. Contudo, grande que seja, não é intransponível.
De um modo geral, são os responsáveis pela empresa que riscam os tecidos e como na sua larga maioria se trata de mulheres, estas patroas são conhecidas por riscadeiras. As contratadeiras, uma designação que por vezes também lhes é aplicada preparam, assim, os tecidos, talhando-os e passando os desenhos.
Posteriormente cada obra irá ”correr” diversas bordadeiras, pois que uma prática ainda comum consiste em fraccionar a própria execução do bordado – uma bordadeira faz os crivos, outra os pontos reais, outra as bainhas e assim por diante.
Se na origem poderá ter estado a preocupação de garantir a maior qualidade e rendimento, pois que se trata de tarefas diferentes e a mesma pessoa pode não garantir igual qualidade de execução, ou ainda, gostar menos do trabalho conforme se trata de um ponto ou outro, aquela prática acabou por ter o efeito perverso de, durante algum tempo, impedir a autonomização das bordadeiras que eram induzidas a aprender só uma parte das técnicas de bordar, perpetuando-se uma situação em que elas estariam sempre dependentes das patroas nas várias intermediações.
Com efeito, a contratadeira constitui um elemento que, da origem ao produto final, controla e domina todo o sistema pelo que, as bordadeiras não tinham, até há poucas décadas, qualquer hipótese de criarem o seu próprio mercado, devido ao seu conhecimento parcial do conjunto de tarefas a executar. Com a quantidade de cursos de Formação Profissional concretizados na região, com o apoio do Fundo Social Europeu, já não é tão decisivo este conhecimento fraccionado da realidade do bordado, pois agora quem quiser aprende o que precisa. Tal não significa um caminho livre de escolhos para a bordadeira que se queira autonomizar: não tem capital para comprar matérias primas nem para estar a trabalhar sem receber, tem problemas com o desenho e com o escoamento da produção, nomeadamente na ligação a mercados mais longínquos. Sendo estas dificuldades assaz significativas, há que acabar de uma vez por todas com o discurso que estigmatiza, de forma apressada e preconceituosa, a função do intermediário. É não só bom, como absolutamente indispensável, que existam pessoas (como felizmente existem), com iniciativa para criar mercados e que, ao garantir o escoamento da produção, são os responsáveis pela própria sobrevivência da actividade. Os problemas que por vezes se verificam radicam no isolamento e desorganização das bordadeiras e na falta de clarificação de algumas das “regras do jogo”, sempre tão difíceis de estabelecer no seio de uma actividade que funciona, largamente, de um modo informal.
Já se viu como, em 1995, 89% das inquiridas não tinham qualquer outra actividade senão o bordado, contudo só 43% se lhe dedicava a tempo inteiro. Nos últimos dez anos, verifica-se o reforço do papel do bordado na economia das famílias pois embora a percentagem das que se dedicam ao bordado como única actividade tenha diminuído para 83%, torna-se muito significativo que a percentagem daquelas que se dedica ao bordado a tempo inteiro tenha subido para 75%. Ou seja, as bordadeiras não só tentam ter outras ocupações remuneradas, como dedicam mais do seu tempo à actividade de bordar, no que, certamente, a crise de emprego local joga um papel importante. No entanto, como já foi referido, mantém-se quase inalterada a proporção das bordadeiras a trabalharem por conta de outrem.