A bibliografia sobre artes tradicionais portuguesas é, em geral, particularmente escassa e poucos foram o que escreveram sobre o bordado. No caso da Terra de Sousa a situação é tanto mais espantosa quanto, como se irá ver adiante, com mais detalhe, se conhece uma citação de 1913 em que Figueiró já é reconhecido como centro de indústria de bordados.
Neste contexto uma das excepções mais notáveis foi Maria Clementina Carneiro de Moura que escreve, num dos seus mais importantes artigos (8):
“Onde o Minho confina com o Douro, assiste-se a uma autêntica florescência de actividades artesanais. Lixa e Felgueiras são presentemente centros importantes de crivos e bordados sobre rede de nó”.
Mais à frente (página 102), no mesmo artigo, refere, “(…) tantos outros bordados a branco do continente (Guimarães, Ponte do Lima, Vizela, Barcelos, Figueiró, Lixa, Lageosa, Tibaldinho e Alcafache) (…) que, em última análise, se aparentam todos com o clássico bordado inglês que se generalizou por toda a Europa, a partir do século XVI, com a designação de ponto cortado”
Quase vinte anos antes (9), esta mesma autora já havia escrito “(…) Felgueiras, (…), Lixa (freguesia de Figueiró da Lixa), na freguesia de S. Tiago de Figueiró, etc., são também localidades onde as mulheres do campo (…) bordam os crivos que afluem ao mercado de Guimarães”.
Também Manuel Maria Calvet de Magalhães (10), distingue, referindo-se aos bordados de Guimarães:
“Os bordados de crivo, de Guimarães, mantém ainda este nome, embora se executem, actualmente, fora da cidade, em especial nas povoações de Lixa, na freguesia de S. Tiago de Figueiró, Felgueiras, etc.”.
Com o intuito de estudar o bordado, Clementina Carneiro de Moura nunca terá visitado a região, não se tendo apercebido que a localidade da Lixa pertence à freguesia de Vila Cova da Lixa (concelho de Felgueiras) e que Figueiró da Lixa é um lugar da freguesia de S. Tiago de Figueiró (concelho de Amarante). Muito ligada à divulgação dos bordados ditos “regionais”, através dos programas de ensino das Escolas Técnicas, Clementina Carneiro de Moura estaria mais interessada no “Bordado de Guimarães”, que na extraordinária produção de um bordado que foi sempre definido em função de um gosto cosmopolita e urbano, enfim, um bordado que não era “típico”, que não se colocava no mesmo patamar onde brilhavam produções como o Bordado de Castelo Branco ou o inventado (1931) Bordado de S. Miguel - Açores. Daí que ela mencione a produção de Lixa e Figueiró na perspectiva das suas ligações ao “Bordado de Guimarães”, ignorando o principal (11).
Calvet de Magalhães identifica melhor a área e menciona as actividades que lhe estão associadas mas, na verdade, tal como a sua colega, pouco ou nada problematiza, quanto à origem ou filiação destes diferentes bordados ou, pelo menos, da peculiaridade da sua ocorrência. De facto, porquê Figueiró? Porquê Lixa? Porque razão estes lugares e não outros?
Sobre este assunto António Teixeira de Sousa (12) apresentou uma explicação muito plausível relativamente à origem e filiação do bordado que, desde há tanto tempo, se produz na área da Lixa e escreve:
“As senhoras dos solares e das casas solarengas desta região (minhota) tiveram, portanto, um papel de relevo na implantação local e no desenvolvimento desta indústria doméstica. Este facto pôde ser, aliás, confirmado pelo testemunho directo de pessoas muito idosas e, também, pela descoberta de bordados com carácter erudito ou semi-erudito, desenhados e produzidos por mulheres do povo, totalmente analfabetas.“ Refira-se, a título de exemplo, o papel desempenhado, no âmbito dos bordados, pela Casa do Castelo, (…), situada em S. Tiago de Figueiró, muito próxima da Lixa. § (…) Segundo nos informaram os seus proprietários e algumas bordadeiras octogenárias, que vivem nos arredores, antigamente as filhas dos caseiros das quintas que pertenciam aos domínios da Casa do Castelo, quando demonstravam capacidades superiores às normais na arte dos bordados, passavam a trabalhar na casa dos Senhores onde se dedicavam, apenas a bordar.”
No mesmo sentido, da antiguidade da produção de bordado nesta zona, vai um artigo de A. L. Carvalho, publicado no II volume dos “Mesteres de Guimarães”, em 1941, em que este autor depois de citar um relatório de 1884 (13), pelo qual se fica a saber que naquele ano o bordado de Guimarães empregava 747 pessoas “produzindo trabalho anual no valor de 45 contos de réis”, prossegue mencionando um texto de 1913, da autoria do Eng. Manuel de Melo Geraldes, em que este escreve: “…Muito naturalmente perguntamos a nós próprios porque se localizou esta indústria nessa região tão pobre e retirada, que é Figueiró da Lixa”. Teixeira de Sousa avançou com elementos que permitem, com a certeza possível, responder a esta pergunta. Mas a razão da manutenção e desenvolvimento desta “indústria caseira”, como noutros tempos se dizia, suscita todo um outro tipo de questões.
Explicar a origem de um saber, ou o início de uma actividade económica, não explica a transformação dessa competência num negócio de sucesso, desenvolvido ao longo de mais de um século, em múltiplas empresas. Com efeito, se o reconhecimento da antiguidade desta área de produção e sua provável origem em Figueiró não oferecem, aparentemente, muitas dúvidas, permanece por clarificar a razão da sua permanência e expansão, tema que adiante se voltará a abordar.
(8) MOURA, Maria Clementina Carneiro de – “Tapeçarias e Bordados” , in Arte Popular em Portugal, III volume, página 70, Verbo s/d. (196?)
(9) MOURA, Maria Clementina Carneiro de - Livro Âncora de Bordados nº1 – Bordados Tradicionais de Portugal, (página 34), Porto, s/d (1949).
(10) MAGALHÃES, Manuel Maria Calvet - Rendas e Bordados de Portugal, Colecção Educativa, Série N, nº 10, Campanha Nacional de Educação de Adultos. s/d (1956). Reeditado pela Vega, Lisboa, 1995.
(11) Outra referência sobre o bordado do “Douro –Litoral”, como então se dizia, encontra-se na monumental obra “As Mulheres do Meu País” (1948-1950) de Maria Lamas, onde esta refere: “Bordadeiras e Rendeiras – São profissões a que se dedicam muitas aldeãs do Douro Litoral. Trabalham em casa, por conta de pessoas que têm o seu negócio organizado, fornecendo os estabelecimentos das terras mais importantes do País. Principalmente em toda a região da Lixa, Figueiró e Fregim, para os lados de Amarante, borda-se muito a crivo, ponto de cruz e outro bordado de fantasia.” pg. 138, 2ª edição, Ed. Caminho. Lisboa, 2002.
(12) SOUSA, António Teixeira de - Bordados e Rendas nos Bragais de Entre-Douro e Minho. Página Ed. Programa das Artes e Ofícios Tradicionais, 1994.
(13) Trata-se do Relatório da Exposição da Exposição Industrial de Guimarães em 1844, cuja edição fac-similada, a Muralha - Associação de Guimarães para a Defesa do Património, publicou em 1991.