Um dos aspectos mais interessantes na consideração da realidade da produção do Bordado da Terra de Sousa diz respeito ao modo como definiu um mercado que, muito rapidamente, teve uma expressão supra regional. Quando, nas últimas décadas do século XIX, se terá iniciado a produção deste bordado, tendo em vista a satisfação de necessidades exteriores às famílias que o produziam, ter-se-á colocado de imediato a questão do escoamento do produto.
Não se sabe exactamente como tudo aconteceu. Imagina-se, sem dificuldade, que resolvidas encomendas de carácter mais local, as bordadeiras rapidamente se tivessem apercebido do potencial traduzido pelo tráfego da Estrada Real que, sublinhando a Portela da Lixa, corria do Porto em direcção a Vila Real, a grande via de acesso rodoviário a Trás-os-Montes. Um pouco acima de Vila Cova, esta estrada cruzava com outro eixo viário de grande importância regional, a estrada que ligava Amarante a Guimarães e que, muitos séculos antes, integrava um dos Caminhos Portugueses de Santiago.
O potencial locativo de Vila Cova da Lixa desde sempre fez a fortuna do lugar, onde o comércio já então apresentava grande expressão, dando-lhe mesmo, até há pouco menos de 30 anos, um carácter mais urbano que tinha então Felgueiras, a sede do concelho. É no aproveitar dos conhecimentos dos negociantes da Lixa e nas virtualidades trazidas pelo cruzamento de vias tão importantes, que se deve procurar o sucesso das empresas ligadas ao bordado. E, ainda nos nossos dias é visível a importância que pode ter a proximidade “à estrada”: não só garante o comércio de passagem, de impulso, como, sobretudo, funciona como uma montra e chamariz a uma escala muito superior: fica-se a saber que, ali, há quem venda bordado…
Por muito pobres que fossem todos aqueles lugares (e eram), por muito remotos que parecessem a um viajante mais urbano (e pareciam), por muito desconhecidas que fossem aquelas povoações (o que ainda hoje acontece), elas nunca estiveram à margem do mercado e os bordados, que sempre tiveram um carácter sumptuário e supérfluo, nunca foram produzidos para ali serem usados. Num primeiro momento terão sido escoados através de Guimarães, o grande centro nacional produtor de linho, mas rapidamente ganham um mercado mais vasto aproveitando todas as virtualidades do cruzamento daquelas vias. De facto, não é por acaso que sendo a origem Figueiró, os bordados tenham sido, no início, comercializados a partir da Lixa, acabando por ganhar esta denominação num processo semelhante ao que ocorreu com o Vinho do Porto, que nesta cidade é exportado sendo produzido bem longe. Também a sublinhar a importância das vias no acesso ao mercado está a própria área de ocorrência do bordado, que se difunde a partir da Estrada Real, com uma particular relevância e incidência nas freguesias que se localizam na bacia do Sousa.
Apesar das bordadeiras trabalharem, em larga medida, por conta de outrem, e ser a empresa que controla o processo de comercialização, a bordadeira faz uma ideia, ou julga fazer, aonde o seu trabalho vai parar. Com efeito, 86% das bordadeiras mencionam esses destinos, quando questionadas sobre dois momentos distintos: no início da sua profissão e na actualidade.
Apesar de variarem em termos relativos, o maior significado destes números diz respeito ao facto de estes centros locais estarem a perder importância como destino imediato na comercialização do bordado. Fazendo as contas, percebe-se que estes locais significam, actualmente, com 317 citações, cerca de 45 % do total, quando num período que se pode situar na década de 70, essas citações, 413, significavam mais de 58%, ou seja, a ligação aos mercados exteriores à região, faz-se cada vez mais directamente. Este cuidado e investimento na procura de mercados mais longínquos não é recente, pois se encontrou uma referência de 1926 à Industria de D. Maria Rachel Medeiros Novaes, da Lixa-Douro a expor e vender, durante as Festas da Agonia, em Viana do Castelo, “um completo sortido em trabalhos de bordado fino, grosso e crivo” (14).
Contudo aquela pergunta, quando se colocou, pretendia avaliar as ligações funcionais ou de complementaridade com Guimarães, o que não veio a estabelecer-se deste modo, dado que aquelas já não existem na memória das actuais bordadeiras. Todavia, é ainda fácil encontrar bordadeiras de Airães, por exemplo, que bordavam, quase exclusivamente, Bordado de Guimarães: “Era todo feito aqui” afirmam convictas.
Também Maria Carolina Pinheiro, que dirige em parceria com um seu filho a empresa Terra-Mãe uma das mais antigas e importantes empresas de produção de bordado, sedeada na freguesia de S. Tiago de Figueiró, menciona a importância daquela ligação e, para o provar, basta aceder ao extraordinário arquivo de desenhos de Bordado de Guimarães ali existente, da autoria de seu pai, Domingos Pinheiro. Provavelmente, algumas das chaves essenciais ao entendimento das relações de complementaridade da área de bordado de Terra de Sousa com a de Guimarães, encontrar-se-ão nesta casa não sendo demais sublinhar que a sua intervenção lança toda uma nova luz no processo de definição e de promoção, tão à moda dos anos 30/40 do século XX, daquele bordado “regional”. Infelizmente a falta de outro tipo de documentos impede, por agora, de avançar mais do que o nome de quem os desenhou, filho de António Joaquim Pinheiro, avô de Maria Carolina e o fundador de uma das mais antigas empresas de bordados.
Do que não há dúvida é que o Norte, em geral, e o Porto, em particular, desde sempre foram importantes como área de escoamento. A este respeito, uma das histórias mais esclarecedoras que se colheu revelou como mulheres desta área, desciam a pé até à estação de caminho de ferro de Caíde e, chegadas ao Porto, continuavam até à Foz e Matosinhos para venderem bordados e colherem encomendas. Ana de Ascensão Vieira (1903-1988), de Trovoada, fazia-o, ainda antes de completar vinte anos. O comboio em Caíde e a “camionete da Serrinha e da Lixa” foram, claramente os veículos para a enorme difusão que este bordado, tão cedo adquiriu.
(14) In Aurora do Lima, 17 de Agosto de 1926, 3ª página, Viana do Castelo